quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Tal e qual

Como gostaria de o ter escrito:


"Quem foi que à tua pele conferiu esse papel

de mais que tua pele ser pele da minha pele?"
(David Mourão-Ferreira)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Não castrem as ninfas

Dou respostas estuporadas, plenas de alugueres, livros de auto-ajuda, formulários e informações em tempo real. Afogo-me em pantomimas de fraternidade e nostalgias de hábitos. Cúmplice de compostinhos incontinentes de citações, poliedros de mil lados. Ligo a paz ao simulacro de ganha-pão do canibal. Agarro-me às pontes entre o individualismo e a solidariedade. A união universal entre homens e mulheres. As mulheres são todas diferentes. São sempre outras. Deixo-me abraçar. Nostos. Regresso à humanidade dos crimes. Inconfessáveis, absolutos, conscientes. Desconstruídos em meras transgressões organizadas. Exibicionistas, armazenadas em labirintos de argumentos lógico-transcendentes. Entre Pompeia e Creta, Tróia, por Helena. A mea culpa não basta. Vejo os espelhos de Alice arruinados. Legendados com estéreis mantras sapientes recuperadas do papagaísmo de quem desmerece Gita. Já nada reflete as ruínas de Propécio. Nirvana. Acordo. Impregnado de oportunismo. Descubro que os xpexialuanes foram substituídos por deslavados e labregos. Chegou o Festim dos Centauros. Valho-me dos cânones dessacralizados do mundo virtual para catalogar. Categorizo o riso, a fome, o sexo, a arte, o lixo. Os novos símbolos da imagética freudiana deixam-me sem Kairos. A alquimia das maravilhas é decifrada pelas novas tecnologias. Quem me salvará do mal? Bocejo.
Kaputt.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Sonhei com porsches castanhos (era verão)

Havia um porsche castanho estacionado no largo, junto à casa da praia, e eu passei aquele verão a sonhar com ele. Era castanho e não era outono. Nunca lhe dei nome. Cresci e passei a criar mnemónicas com as letras das matrículas dos meus carros. Na fase inicial da puberdade, senti-me feio. A culpa foi, evidentemente, de uma mulher: minha mãe não deixava barbear o emergente bigode e eu tinha pesadelos com Dalí. Sinto-me safo quando guio. Sóbrio e seguro, também. Penso que tenho que ser bonito tanto quanto penso em aspirar a casa: sou como sou, está como está e as coisas são como são. Bem sei que se for às compras fico logo mais bonito para as mulheres feias. Não são essas que me fazem vibrar. Vibro quando leio em voz alta estórias de dragões e vocifero o Mondragó e os faço vibrar com o Verdugo. Vibro quando ouço Chopin (Sonata nº 1) e Beethoven (as Sinfonias, especialmente a 6ª) e, por vezes, quando toco Bártok ao piano. Vibro com cavalos e com caçadas e com carros velozes e com mulheres elegantes. Vibro com planos para o futuro. Vibro quando consigo. "Pelo menos uma"? Vibro com a vida dos meus. Todos os dias.
Recuso a do coração, que gato escaldado de água fria tem medo. Ainda assim: Rio, mesmo quando ninguém mais ri. (Creio que já o confidenciei antes.) Gosto de ouvir aqueles de quem gosto. Gosto que gostem de me falar aqueles que gosto de ouvir. Confesso as manias e o paternalismo. Quem confessa não merece castigo. Sobre as mulheres, não sei. Se fossem todas iguais, não seriam só os porsches a ter lugar para um. No fim, não basta que saibam falar baixo.

("Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável")

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Para um bom serão


História sem dia seguinte

O Amor de Perdição esclarece que ninguém sente em si o peso do amor que inspira e não comparte.
O problema é que não leste Camilo.
E agora, deveria fingir-me compungido?

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Da falta de tempo

Há tantas coisas que gosto de fazer, que não tenho tempo para as fazer todas. E isso não é mau.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Inversões

Dizem que a lógica da caça consiste em o caçador procurar uma presa que foge. Se eu visse uma lebre correr na minha direção não sei se me desviaria, mas lá que não lhe comeria a carne, temendo a gripe das lebres loucas...
Dizem que a lógica da guerra é atacar e esconder, procurando matar e sobreviver. Se alguém procura matar e morrer, não guerreia, aterroriza. Mas lá que precisamos de mais do que de armas de guerra para combater...
Dizem que é preciso sofrer para ter algo a dizer. Passei uma semana sofrendo com dor de dentes. Nunca me apeteceu falar...
 

domingo, 15 de novembro de 2015

A indiferença

Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não me importei
Porque não era nada comigo.

Em seguida levaram alguns operários,
Mas a mim não me afectou
Porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas,
Mas eu não me incomodei
Porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir chegou a vez
De alguns padres, mas como
Nunca fui religioso, também não liguei.

Agora levaram-me a mim
E quando percebi,
Já era tarde.
(Bertolt Brecht?)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

No meio de tanta manobra

Convém não esquecer a de Heimlich. Suspeito que ainda virá a dar jeito.

(André Kertész)

Se te escrevesse uma carta

Beija-me os bons dias, todas as manhãs do mundo. Acompanha Orlando pelas Feiras e pelas Medinas. Leva As Meninas pela mão, seja ao Meurice ou ao bistrô. Pressente a distância. Sonha com o longe e a maresia, com o movimento e a rota clandestina. Acorda nas suites de Bach, em Aspen ou na Riviera. Arranja-me dois dedos de silêncio e dois botões de decote. Abraça, sem medo, Guido Crepax. Preserva o som da criação de Stradivari, a Amazónia e Montmartre. Embala o sonho com o corpo. Sorri no Maio deste Outono. Deixa crescer o assombroso livro da memória e corta o cabelo só por querer. Vibra com as cores de Miró e lateja nos meus olhos verdes. Perde os segredos que eu não quero esconder. Invade-me com o manto de Klimt. Converte o mergulho no gume da vaga em alma derramada. Ignora Circe. Crepita nas idas de uma vida inteira. Esquece mil anos de razão. Traz uma mala de nada. Solta-te com Lewis Carrol e sê menos. Arrisca com Léo Ferré e sê demais. Sobe ao alto do campanário de Giotto e avista as gaivotas. Ouve coisas de mim. Imita com Wilde e acorda de ti. Cega-me com a loucura da palavra à solta, com o ritual dos teus dedos, com o futuro inventado como dantes. Escolhe Quílon. Vive o desejo ao exagero. Vive a ternura ao infinito. Vive a cumplicidade imprópria. Vive o excesso dos nossos corpos. Existe!  

Kamasutra

Talvez seja a falta de poder.
Talvez a falta de poder de encaixe explique a necessidade de ficar sempre por cima.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Angústias

Não foi quando, no seu sotaque brasileiro, me elucidou como o "português do Portugal" era impreciso: onde já se viu falar em "desvitalização"? É tratamento de canais. Afinal, esse tratamento pode ser feito em dente morto. Alguém vai desvitalizar o que já 'tá morto? Nem quando dissertou sobre a bobagem que é dizer "chumbar dente". Só em português do Portugal. Gente, ninguém põe chumbo no dente, não. Foi quando, no meu português, me avisou: vamos ter que entrar sem anestesia...

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Arca de Noé

Esta vai ser a melhor Feira da Golegã de sempre. Deixe-me levar o Neviolini. Vá lá, avô. Claro que é um bom cavalo para a feira. Mas, ele tem-se portado tão bem. Eu sei que é de corrida, não se preocupe. Eu consigo. Vamos lá Nev. Passo, passo, boa, muito bem, ok. Lindo Nev. Bem. Olha ali a manga. Devagar. Calma. Estão todos a olhar para ti. Estão todas a olhar para mim. Ó Nev, a melhor feira de sempre. Oo, calma. Oo, devagar. Estamos na manga. Oo. Não é uma corrida, Nev. Oo. Passear. Passo. Oo. Não corras. Não corras. Não, Nev. Ooooo. Vou cair. Aí, aí, para Nev. Oo. Quem me mandou trazer um cavalo maluco que se passa se vê outro à frente? Ooo. Não estamos a correr Nev. Isto é redondo. Nunca os ultrapassaremos a todos. Corremos em círculo e não há meta. Oo. Para Nev. Oo. Vou cair. Ooo... Escuta Nev, estão a aplaudir-nos. Pensam que é propositado. Ooo. Calma. Não vou cair. Oo. Cuidado Nev. Alto. Estou cansado. Já estás cansado, Nev? Ooooo. Não avô, claro que não o queria matar. Sim, eu sei, vou já pôr-lhe a manta. Espetáculo Nev. Foste um espetáculo. Estavam todos a olhar para ti. Estavam todas a olhar para mim. A melhor feira de sempre!

(Entretanto, o Neviolini morreu. Se lhe escrevesse uma carta...)


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Pateta! Chorão! Desbocado! Beliscão!*


O Frei Tomás é mais popular do que os telhados de vidro. Gosto da mulher de César mais do que de quem não lhe veste a pele. Buda e Stuart Mill juntavam-se os dois à esquina, a tocar a concertina, e era uma inspiração. Escusavam de dançar. És um homem ou um rato? Prefiro a versão de Steinbeck. Golias e David, retratados em bloco por Isaak Brodsky. Cabelinho, cabelão, transforma-te num cordão. E assim se prendeu um leão. Ao fim e ao cabo, vai dar (quase) ao mesmo: de bons conselhos, há blogs cheios. Já de boas intenções...

*Nota-se muito que o "TPC" é sobre o Harry Potter?

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Ao que chegámos

- Achas que posso levar o equipamento do Benfica?
- É melhor não... Leva o do Chelsea.
- Achas?! Ainda vão pensar que eu não sei jogar.

O dia que não antecipei

Convenceu-me o petiz a deixá-lo jogar futebol com os seus amigos.
Ontem, assinei a autorização para que treine futsal na academia do sporting...

Não compreendo

Pessoas que, com este tempo, andam sem guarda-chuva. Professores que mandam TPC's para pais. Alertas de facebook a avisar que sou amigo "à" anos de pessoas que não conheço. A surpresa manifestada a propósito de tinder. Mulheres que se vestem para parecer que têm mais 10 anos. O número de vezes que o meu carro canta táxi. Mentes brilhantes que se sujeitam a comentar intempéries e encomendas a Deus. A letra E manuscrita ensinada como um 3 do avesso. Equiparar um cigarro a uma fatia de cinco jotas. Como é que pessoas que não viajam encontram a sua alma gémea. O propósito de listas deste tipo.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Romãs

D. Maria de Lurdes era a costureira de mamã e, por arrasto, a nossa. Quando chegava, mamã chamava a minha irmã e fechavam-se, as três, na salinha.
Eu e o meu irmão quedávamo-nos por perto, até chegar a hora do nosso suplício, em que nos mediriam a perna desde a cintura até ao joelho, com uma fita métrica verde de um lado e amarela de outro, que se enrolava e desenrolava arrepelando-nos. Os centímetros eram apontados num pequeno bloco de apontamento de folhas brancas, com uma capa cor-de-pele e a palavra Elite escrita no centro de uma bola azul e os tecidos marcados com pedras triangulares de giz. Experimentávamos calções inacabados e camisas ainda sem mangas, onde sempre se descobriam foles prontamente eliminados por alfinetes. Ninguém sabia fazer uns calções tão desconfortáveis e uns colarinhos tão apertados como D. Maria de Lurdes. Lembro que tudo me picava. Não só os alfinetes, mas também as fazendas, o põe-te direito, o está quieto.
Redimia-se D. Maria de Lurdes, no dia de Todos-os-Santos que era também o dia do seu aniversário, dando-nos as mais belas e saborosas romãs, quando lhe batíamos à porta entoando "bolinho, bolinho, abra a porta ao seu santinho". De entre todos os bolos e broas e gorilas e marujinhos, aquela romã era o que eu mais gostava de receber. Por razões que não cabem aqui, nunca deixei de a visitar naquele dia.
Ontem, fez 87 anos e recebeu-me sem romãs. À despedida, quando já entrava no carro e a deixava encostada à ombreira da sua porta, ouço: "Olhe menino...". Virei-me para encontrar uns olhos que pareciam querer guardar imagens que já lá vão. Talvez fossem os meus...