segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Romãs

D. Maria de Lurdes era a costureira de mamã e, por arrasto, a nossa. Quando chegava, mamã chamava a minha irmã e fechavam-se, as três, na salinha.
Eu e o meu irmão quedávamo-nos por perto, até chegar a hora do nosso suplício, em que nos mediriam a perna desde a cintura até ao joelho, com uma fita métrica verde de um lado e amarela de outro, que se enrolava e desenrolava arrepelando-nos. Os centímetros eram apontados num pequeno bloco de apontamento de folhas brancas, com uma capa cor-de-pele e a palavra Elite escrita no centro de uma bola azul e os tecidos marcados com pedras triangulares de giz. Experimentávamos calções inacabados e camisas ainda sem mangas, onde sempre se descobriam foles prontamente eliminados por alfinetes. Ninguém sabia fazer uns calções tão desconfortáveis e uns colarinhos tão apertados como D. Maria de Lurdes. Lembro que tudo me picava. Não só os alfinetes, mas também as fazendas, o põe-te direito, o está quieto.
Redimia-se D. Maria de Lurdes, no dia de Todos-os-Santos que era também o dia do seu aniversário, dando-nos as mais belas e saborosas romãs, quando lhe batíamos à porta entoando "bolinho, bolinho, abra a porta ao seu santinho". De entre todos os bolos e broas e gorilas e marujinhos, aquela romã era o que eu mais gostava de receber. Por razões que não cabem aqui, nunca deixei de a visitar naquele dia.
Ontem, fez 87 anos e recebeu-me sem romãs. À despedida, quando já entrava no carro e a deixava encostada à ombreira da sua porta, ouço: "Olhe menino...". Virei-me para encontrar uns olhos que pareciam querer guardar imagens que já lá vão. Talvez fossem os meus...

7 comentários:

  1. E há lá melhor coisa do que continuar a ser menino aos olhos de alguém? Uma ternura este seu testemunho.
    E, agora, uma adivinha:

    "De Roma veio meu nome,
    Eu coroado nasci...
    Duzentos filhos que tive,
    De encarnado me vesti."

    Um dia feliz, querido Outro Entre :)

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  2. Permita-me: leve-lhe hoje uma romã, Outro Ente. Antes que seja tarde e a tradição se perca. Porque a ternura é infinita.
    Um beijo e um dia feliz,
    Linda Blue.

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  3. Também guardo em relação a uma Maria de Lurdes "muitas imagens que já lá vão". Era o nome da minha mãe.
    Não sendo costureira, (mas sempre achei que conseguia fazer mesmo tudo o que quisesse) imaginou e criou para mim, até aos doze anos, mais ou menos, uma fantasia de Carnaval diferente. Até para mim era surpresa, até ao dia de estrear. Era uma expectativa, uma alegria. No meu caso, quando a fita métrica vinha direito a mim, começava a magia. As fantasias eram sempre lindas, mesmo, diferentes de todas as outras, produto da imaginação da minha mãe. Na festa do colégio, lá ia eu, tão feliz, depois, todos gabavam a minha fantasia. Aquilo que é feito com amor, sai mesmo melhor, confirma-se. Hoje, Maria de Lurdes e fita métrica, remetem-me para momentos muito felizes da minha vida.
    Boa tarde, Outro Ente.

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  4. Que lindo texto, Outro Ente; e não é que me revi completamente nele ( substituindo evidentemente os calções por saias), mas do que me lembro muito bem era das cócegas horríveis que me faziam nas pernas as mãos da D. Carolina, quando lhes marca a altura. Nunca mais vi a costureira que me foi medindo o comprimento da adolescência, mas percebo tão bem o medo da D. Maria de Lurdes de não o voltar a ver...
    Um beijo

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  5. Este seu texto, tocou-me.
    [ainda me faz chorar...vou-me já embora]
    Um beijo

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  6. Esta "romã" ficou difícil de descascar; casca plena de ternura e um sumo com sabor a carinho, de tal maneira que apetece tê-la sempre inteira, para ser lembrada!
    Uma boa semana, Outro Ente.
    Um beijo,
    Mia

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  7. Da ternura, devia ser o título deste post.

    Beijos, caro Ente, e uma boa noite. :)

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