quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Sonhei com porsches castanhos (era verão)

Havia um porsche castanho estacionado no largo, junto à casa da praia, e eu passei aquele verão a sonhar com ele. Era castanho e não era outono. Nunca lhe dei nome. Cresci e passei a criar mnemónicas com as letras das matrículas dos meus carros. Na fase inicial da puberdade, senti-me feio. A culpa foi, evidentemente, de uma mulher: minha mãe não deixava barbear o emergente bigode e eu tinha pesadelos com Dalí. Sinto-me safo quando guio. Sóbrio e seguro, também. Penso que tenho que ser bonito tanto quanto penso em aspirar a casa: sou como sou, está como está e as coisas são como são. Bem sei que se for às compras fico logo mais bonito para as mulheres feias. Não são essas que me fazem vibrar. Vibro quando leio em voz alta estórias de dragões e vocifero o Mondragó e os faço vibrar com o Verdugo. Vibro quando ouço Chopin (Sonata nº 1) e Beethoven (as Sinfonias, especialmente a 6ª) e, por vezes, quando toco Bártok ao piano. Vibro com cavalos e com caçadas e com carros velozes e com mulheres elegantes. Vibro com planos para o futuro. Vibro quando consigo. "Pelo menos uma"? Vibro com a vida dos meus. Todos os dias.
Recuso a do coração, que gato escaldado de água fria tem medo. Ainda assim: Rio, mesmo quando ninguém mais ri. (Creio que já o confidenciei antes.) Gosto de ouvir aqueles de quem gosto. Gosto que gostem de me falar aqueles que gosto de ouvir. Confesso as manias e o paternalismo. Quem confessa não merece castigo. Sobre as mulheres, não sei. Se fossem todas iguais, não seriam só os porsches a ter lugar para um. No fim, não basta que saibam falar baixo.

("Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável")

8 comentários:

  1. Há inconfessáveis (e confessáveis que me merecem castigo).
    Boa tarde, Outro Ente.

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  2. Já eu era mais um MG vermelho.

    Boa tarde, caro Ente. :)

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    1. Querida Maria Eu,
      Guardo boas recordações de um MGF verde... foi há tanto tempo... (quase me fez sentir velho).
      Um beijo,
      Outro Ente.

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    2. (vintage. velho, nunca. eram um must, os MGs) :)

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  3. Bem, acho que se perdoa perfeitamente uma maniazinha ou outra, um paternalismozinho ou outro, perante tão rica colecção de predicados aí listados (estou impressionada) à qual ainda por cima se acrescenta uma respeitosa veia de pianista, que é coisa de grande valor, ah pois é. De forma que mesmo sendo um Porsche castanho, ou seja, um bocado mais feio que os das cores giras, o quadro está muito bem composto.
    Resta-me consolá-lo relativamente aos pesadelos com Dalí, querido Outro Ente: não é o único (brrr).
    E fica um sorriso dos grandes e um abraço dos calorosos (frio sim, mas lá fora).

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