Há dias, enquanto passava os olhos pelas gordas dos jornais, deparei-me com um cabeçalho que falava em "mulheres nas cotadas". Assim, de repente, aquela "leitura na diagonal" remeteu-me para a "coutada do macho ibérico". O célebre Acórdão do nosso Supremo Tribunal de Justiça preconizava, há 25 anos, que as mulheres, por vezes, "estavam a pedi-las"*.
Ultrapassada que está (?) a ideia de que uma mulher de minissaia está a pedi-las, continua a haver uma cultura de ponderação de circunstâncias que, não sendo atenuantes, funcionam como se o fossem. A propósito bastará ler algumas recentes decisões dos nossos Tribunais Superiores, especialmente no âmbito da violência doméstica perpetrada contra mulheres ou dos crimes de natureza sexual**. É a cultura do "pôr-se a jeito" que ainda grassa.
Enfim, o artigo falava, afinal, da criação de quotas para mulheres nas empresas cotadas em bolsa. Ora, apesar de respeitar e ter até dificuldade em refutar alguns dos argumentos de quem defende que uma tal situação onerará as mulheres com um novo estereotipo: precisamente o de só ali estarem a favor; apesar de concordar com quem refere que as mulheres não precisam de favores; estou convicto de que, destas medidas, precisamos todos.
* "As duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la. Ora, ao meterem-se as duas num automóvel juntamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas (...) Possivelmente, outras formas haveria, contudo, de ele manter relações sexuais com uma ou até com as duas ofendidas. À força, como o fez, é que não. De qualquer maneira, a gravidade do ilícito no caso concreto está, como se disse, algo esbatida".
** Assim, o Acórdão também do STJ, de 2004, que apela ao facto de a mulher assassinada recusar manter relações sexuais com o marido-homicida, assim violando os seus "deveres conjugais".
Ambos os Acórdãos estão disponíveis na base de dados:
O Acórdão da Coutada do Macho Ibérico é, infelizmente, famoso, por ser um exemplo paradigma de como as convenções e preconceitos intrínsecos ao juiz enquanto homem, podem afectar a sua capacidade de discernimento e distanciamento enquanto julgador.
ResponderEliminarE este, do psiquiatra violador de uma paciente grávida? Também denota um desvio mental qualquer do magistrado que o proferiu, cujo apelido, ironicamente, é Papão.
Beijos, Outro Ente.
LP.
Cara Linda,
EliminarAlgumas "noções" são nódoas que só se resolvem deitando a peça no lixo.
Nesse Acórdão, proferido por um coletivo, só o voto de vencido do Dr. Papão se aproveita. Embora aí, a meu ver, não estaria tanto a culpabilização da vítima-mulher quanto a noção de violência/violação.
Um beijo,
Outro Ente.
Tem razão, claro. A leitura atravessada de sentenças e acórdãos online, dá nestas confusões.
EliminarQuanto às motivações que levam a uma ou outras decisões, parece-me que, em resumo, está tudo por fazer, como se costuma dizer.
Um beijo também,
LP.
O facto de se ouvirem vozes discordantes, e de essas vozes constituírem uma maioria muito significativa, levam-me a crer que vamos no bom caminho.
EliminarBom dia,
Outro Ente.
Estes são os que têm poderes na verdadeira acepção da palavra.
ResponderEliminarQuerida Be,
EliminarÉ o poder do caso concreto.
Um beijo,
Outro Ente.
As nativas de comportamento contido, as turistas, umas galdérias... os acórdãos, esses, oxalá servissem para reforçar uma mudança de paradigma (como se diz agora), sério, sem favores para ninguém.
ResponderEliminarBom dia, Outro Ente.
Querida Mia,
EliminarOs Acórdãos deverão servir para aplicar a lei, sem favores. Por outro lado, deverão também alhear-se de paradigmas e evitar a tentativa de se alcandorarem precisamente a "criadores" de novos paradigmas.
Boa tarde,
Outro Ente.
As quotas para mulheres são, para mim, tão ofensivas como as predisposições e preconceitos desses machos de coutada, embora obviamente não tenham as mesmas consequências. Mas o principio, esse, ofende-me tanto um como outro. Acho vergonhoso aceitarem, concordarem ou permitirem isso. A pessoa que ocupa o cargo deve ser a melhor para o cargo, se isso implica uma questão de género - para um lado, ou para o outro - está tudo mal. Proteger essa ideia e ainda por cima tornar as mulheres numas coitadinhas, revolve-me as entranhas. Aliás preferiria não ficar no lugar do que saber que só o consegui porque havia uma quota para preencher... Faz-me lembrar os meus colegas de liceu que depois de levarem uma abada no snooker diziam "para rapariga não jogas mal..." o que aquilo me irritava!!
ResponderEliminarBom, mas adiante, boa tarde, Outro Ente
Querida Eva,
EliminarO seu comentário é comum a muitas mulheres. Aliás, encontro nelas a oposição mais sentida à discriminação positiva através das quotas. Ainda assim, e porque não está em causa não colocar no cargo a "melhor pessoa", vejo-lhe vantagens.
Note que a ideia não é distinguir entre homens e mulheres no concurso de acesso a determinada função. Antes, impor um mínimo de mulheres em equipas formadas "por convite".
Esse "paternalismo" de que fala (e que acredito a irrite) não passará de brincadeira. Ainda que sem graça. Afinal, todos sabemos que não há melhor parceiro para snooker do que uma mulher.
Um beijo,
Outro Ente.
Querido Outro Ente,
EliminarVejamos a verdadeira questão, essas mulheres seriam convidadas se não houvesse quotas impostas?? Parece-me que em muitos casos não, e é desses que falo, obviamente nos casos em que as pessoas são convidadas para cargos pelo seu desempenho reconhecido, não é de quotas que se fala, mas de competência. E sim, era disso que se deveria falar sempre, parece-me. Não vejo vantagens, sinceramente, vejo paternalismo e não gosto.
E quanto a isso de o melhor parceiro para o snooker ser uma mulher nao sei, e também não vejo bem o porquê, oh querido Outro Ente... Não me quererá elucidar, meu caro? ;)
Beijo
Não posso. Elucidá-la. Isso seria dar trunfos ao "inimigo". E, eu jogo sempre para ganhar.
EliminarBoa noite,
Outro Ente.
Não me puxe pela língua, Outro Ente. Sei de outras tantas pérolas judiciais que só não ficaram tão famosas, de resto em nada pedem meças aos acórdãos citados.
ResponderEliminarQuerida Mirone,
EliminarTemos uma Justiça feita por Homens. Ainda bem.
Um beijo,
Outro Ente.
Boa tarde, Outro Ente,
ResponderEliminarJá conhecia esses Acórdãos lamentáveis. As raízes fortes, que se expandiram durante anos e anos por tudo quanto era terreno tornam-se difíceis de desenraizar. Enquanto mulher, acho que é importante dar um exemplo prático, como forma de contributo, de coisas sentidas na pele. O que vou dizer a seguir não tem nada a ver com guerras de sexos, essas estúpidas guerrilhas que põem mulheres para um lado e homens para o outro, que só afastam ainda mais em vez de ajudarem a complementar, é só um elemento para reflexão, aliás, pedia-lhe até que ao ler isto se despisse do homem e fosse só mesmo um Ente. Vou chamar-lhe, a descriminação subtil. Ainda não é expectável que uma mulher se dedique muito ao pensamento, à reflexão, que se interesse em debater determinados assuntos, ainda há "a coutada dos assuntos de homem". Nunca senti isto em termos profissionais, mas em encontros sociais, quando as pessoas começam a lidar umas com as outras pela primeira vez, sim. Iniciando-se uma conversa sobre um determinado assunto que requeira um certo uso do cérebro, os homens tendem a uma postura de ensino, todos sorriso condescendente e de uma forma muito leve, mesmo muito leve, percebo, estão preocupados que entre em curto circuito. E logo eu, que adoro que me ensinem coisas, mas percebo todo o cuidado que estão a ter para pouparem a minha pobre cabecinha e lá prosseguem muito cautelosamente só até ao ponto onde já tinha chegado. Por aquilo que dizem ser cara de parva, definitivamente não tenho cara de parva, garanto, portanto não será por aí . Sorrio com a generosidade, fico grata e às vezes fico-me por sorrir e fazer jus à condição de bibelot que me acaba de ser atribuída, outras vezes falo, digo o que penso, porque, às vezes, até sei umas coisas sobre o assunto em questão, o que se segue é algum incómodo e desconforto, aquilo não era suposto . Também acontece gostar muito de futebol e portanto sei as regras e estou a par do que se vai passando, isso então é a surpresa das surpresas, nunca imaginaram que, gosta? mas está a par disso? isso confesso-lhe, passei a guardar para mim quando surge a conversa nesse tipo de eventos. Isto é real Outro Ente e enquanto assim for, quotas, coutadas e cotadas hão de estar sempre na ordem do dia.
(Ao menos vingo-me aqui nos blogs, obrigada ;))
Querida Cláudia,
EliminarExistem assuntos que, naturalmente, suscitam mais interesse entre homens e outros que são preferidos por mulheres. Ainda bem que assim é. A igualdade de direitos não visa a anulação das diferenças entre géneros. Pela minha parte, gosto das diferenças.
Isto não equivale a dizer que uma mulher seja "apenas" um bibelot. Deverá ser mais do que isso. Não lhe parece?
Sim, provocava-a. Enfim, que quer que lhe diga? Que o problema dos homens é subestimarem o conhecimento de algumas mulheres bonitas?
Boa tarde,
Outro Ente.
Venho só manifestar a minha total concordância com: "A igualdade de direitos não visa a anulação das diferenças entre géneros. Pela minha parte, gosto das diferenças." Mas creio que já sabia que eu iria concordar com isto e também não foi sobre isso que escrevi. Mas também tenho a certeza de que me entendeu perfeitamente. Sim, provocou-me. Relevei. Desejo-lhe um bom fim de semana.
EliminarEu acho essa discriminação positiva do mais ofensiva que há. Ainda assim pode haver pior... Conheço empresas que têm quotas para homossexuais.
ResponderEliminarE prefiro trabalhar com homens. Feitios...
Querida Mais Picante,
EliminarAs reações mais viscerais são, de facto, das mulheres. Especialmente das que se opõem. E entendo-as. Porém, encaro as quotas, em determinadas situações, designadamente em equipas formadas "por convite", como uma exigência em prol da sociedade e não apenas em favor das mulheres. Aquilo de que discordo veementemente é que seja fator a ponderar no âmbito de concursos. Neste contexto, nem a favor nem contra. Ou seja, no domínio da avaliação, o sexo não é critério.
Essa de, não apenas o sexo encarnado, mas também o praticado ser "protegido" por quotas é uma novidade para mim. Também têm para os bdsm, os swingers, os poliamorosos, os virgens, os capricórnio e os escorpiões? Muito gostava de ter acesso aos inquéritos da fase de concurso dessas empresas.
Há áreas onde prefiro ter uma equipa maioritariamente masculina. Mas, em certos casos, elas são melhores. Noto isto, essencialmente, em funções "sem rede", em que a coisa tem de correr bem à primeira. Generalizando (e, logo, errando, bem o sei), se a situação for de "agora ou nunca", tendo a designar uma Senhora. Por vezes, tenho a sensação de que elas se esforçam tanto porque pensam que estão sempre "à prova".
Um beijo,
Outro Ente.
Uma vez tive um chefe que me disse qualquer coisa como "enquanto eu aqui estiver nenhuma mullher ocupará aquele lugar", na altura fiquei danada, respondi-lhe que o lugar não só haveria de ser meu, como mo seria oferecido por ele. E foi. Mas depois de ter filhos percebi-o, a minha disponibilidade diminuiu. E isso não tem mal nenhum, olhe.. é a vida.
EliminarBom dia querido Ente.
O mérito a desconstruir preconceitos...
EliminarPor vezes a diminuição da disponibilidade é compensada com o aumento da assertividade. Ir "direto ao assunto" é uma qualidade que beneficia todos. Acresce, por exemplo, a "noção do real" que só a vida ensina e que é tão mais importante. Quem não tem tempo a perder, despacha-se. Mas quem ainda não sabe, precisa de tempo para aprender. Sou daqueles que entende "não há substituto para a experiência".
Um beijo,
Outro Ente.
Sou favorável à imposição das famigeradas quotas. E tenho um único e parece-me que suficiente argumento. Nos concursos públicos em que a igualdade de género é escrupulosamente respeitada (veja-se o caso dos exames à magistratura, que são identificados por código e não por nome) as mulheres acedem em larga maioria. Assim sendo, é incompreensível - se excluirmos precisamente razões de discriminação de género - que em outras áreas não assumam idêntico destaque.
ResponderEliminarAs quotas servem sobretudo para mudar mentalidades e para fazer com que deixem de ser necessárias.
Querida Cuca, a Pirata,
EliminarEssa é, também, a minha opinião. A dificuldade maior, neste momento, parece-me ser a da habituação. É preciso habituarmo-nos a ver, igualmente, homens e mulheres nos mesmos lugares. Dantes também só havia mestres-escola masculinos... As quotas terão a vantagem de acelerar o processo conducente a efetiva igualdade.
Um beijo,
Outro Ente.