domingo, 10 de maio de 2015

Quando os ídolos mais pecam

Hércules era um cãozarrão, setter irlandês de carvão, que viera para a herdade no início de um verão menino, prometendo ser caçador exímio, em chegando a setembro.
Afeiçoei-me tanto a ele, que sonhava ser o Hércules um Tim, que me perseguia até para casa, até para o colégio. E, sonhei tanto, que a mãe deixava de proibir cães em casa e Hércules se deitava aos pés de meus pés.
Findas as férias, o avô contava que Hércules era um safado. Fartando-se da jornada desaparecia por uns dias, voltando pimpão e esfaimado, abanando tanto a cauda, que dava a impressão de estar prestes a despegar-se e voar.
Estas fugas, eram acompanhadas pela falta de galinhas alardeada pela D. Maria Rita e seguidas de uma ou outra cadela cheia.
Um dia, o Dr. Teixeira confundira Hércules com um coelho e atirara a matar. Lembras-te quando, naquele dia, tu confundiste um coelho com uma raposa bebé e gritaste tanto que afugentaste a caça toda? Eu, envergonhado, lembrava-me e, encolhido, calava as perguntas, deixando morrer na garganta, afogadas com as lágrimas dos homens, as perguntas sobre a morte do meu cão. O Hércules era meu!

Anos mais tarde, soube que o avô afogava os cães e os gatos recém-nascidos, na ribeira ao fundo da herdade.   

4 comentários:

  1. A infância dá-nos uma enorme capacidade de amar. Tem, ainda, a bondade da inocência (essa coisa de afogar os cães e os gatos recém-nascidos nunca me coube na cabeça...).

    Beijos, meu caro Ente, e uma excelente semana. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida Maria Eu,
      Era uma prática banal, vista como uma necessidade. O facto de hoje sentirmos repulsa e acharmos que se trata de uma barbárie reforça a minha fé na evolução da humanidade.
      A inocência permite-nos confiar cegamente. Mas, a capacidade de amar, essa cresce connosco.
      Um beijo,
      Outro Ente.

      Eliminar
  2. Serão os ídolos que mais pecam, ou nós que mais pecamos porque os transformamos em ídolos? eles provavelmente só querem ser pessoas, comuns, banais, com direito a errar, às vezes pecadores, às vezes anjos da guarda e não pediram para ser elevados a nada.
    Boa noite, Outro Ente.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida Cláudia,
      Não tenho as respostas. Embora, essa do "não pediram para" me soe a insubordinação teenager de quem se acha com direito a tudo porque, afinal, "não pediu para nascer". Salvo o devido respeito por opinião contrária, somos o que fizermos de nós e temos a obrigação de ser o melhor que nos for possível.
      Finalmente, e apenas por uma questão de honestidade intelectual, não escrevi que são os ídolos quem mais peca, mas apenas "quando", significando, como claramente resulta do texto, que é na infância que as falhas daqueles que admiramos mais pesam.
      Quanto ao que querem ser, nas suas palavras, não diverge muito do que efetivamente são, na minha experiência.
      Um beijo,
      Outro Ente.

      Eliminar