A bisavó vivia a ilusão de orientar as preparações para a Páscoa. Começara há cerca de duas semanas, assegurando-se de que os licores de tangerina e de funcho estariam prontos atempadamente.
Anna era uma mulher atormentada, apaixonada por línguas e ideais de salvação. Conhecia as Bíblias católica e budista e o Korão. Saíra da Alemanha para a Suíça e casara com o bisavô que nunca conheci, num Portugal que não lhe bastava.
Enquanto pôde, Anna viajara pelo mundo, ausentando-se longos períodos e levando o avô a dizer que a mãe era estrangeira em toda a parte.
As três arcas da bisavó eram assustadoras, como caixões para doze homens. Enormes, largas como tabuleiros de passas e altas como nós, de madeira escura envernizada.
A da sala da costura tinha roupas antigas, vestidos de batizados e de casamentos, peças de veludo e saris de seda (que ninguém sabia envergar sem cinto e por vezes acabavam em vestidos) e panos de linho bordados a cru.
Na sala da despensa (sempre me intrigou que fosse uma das maiores divisões da casa), onde havia louceiros e lareira com lar, estavam as outras duas arcas. Uma com as loiças Johann Sellman e Langenthal e outra com estatuetas e esculturas, telas e quadros, livros e memorabilia.
Nestes dias, abriam-se as arcas. Arejar e limpar eram palavras de ordem.
A bisavó, que não nos queria dentro de casa, encomendava o recado, para apanharmos pau buxo e o espalharmos desde a estrada até às escadas. Assim - dizia a bisavó - o Senhor Prior traria Aleluia.
(Mal Anna sonhava que, jogando às escondidas, eu e o Nuno nos escondíamos dentro da arca da roupa, prolongando as buscas até nos fartarmos.)
Eu era sempre encarregue de espalhar um trilho de alecrim e pétalas de flores, do portão até à entrada de casa. :)
ResponderEliminarAnna devia ser deveras interessante, assm lhe dessem a oportunidade de contar e assim ela o quisesse.
Beijos, Ente, e boa Páscoa (nem que seja para descansar).
Maria Eu,
EliminarAlecrim e pétalas será mais perfumado. Provavelmente depende dos locais, nunca investiguei o tema.
Anna deixou muitas histórias. Algumas, conheço-as apenas de ouvido, outras são memória vivida.
Beijos,
Outro Ente.
Que ANAmnese fantástica, meu caro!
ResponderEliminarBoa Páscoa.
Caro JM
EliminarParece que quanto mais o tempo passa, mais retornam recordações de episódios que vivemos como nadas, e acabam por assumir, na nossa memória, uma importância que não imaginámos.
Agradeço e retribuo os votos de boa Páscoa,
Outro Ente.