sexta-feira, 24 de abril de 2015

Uma explicação sem resposta que será uma forma de ler ou um estranho ser

O escritório do pai está forrado a livros. Uma das portas de vidro dava acesso à nossa zona. Ali estão Os cinco, Os sete, O mistério, Os hardy, O Tom Sawyer e o Huck, O cavalo preto, O Príncipe Feliz e os Contos de Sophia de Melo Breyner; entre a Patrícia, Este rei que eu escolhi, As quatro torres, O tempo em que vivi, a biblioteca dos escuteiros mirim e a colecção de livros cor-de-laranja sobre história.
Um dia, cheguei junto de meu pai e disse-lhe: "-Eu já li tudo!".
Nesse serão, o pai leu-nos grande parte do primeiro acto de Frei Luís de Sousa. Depois, passou-me o livro para a mão e passei a ter acesso a todas as outras estantes.

Não sei se por ter a consciência de que os livros que lia já tinham sido lidos por outros antes de mim, se por saber que os meus irmãos iriam lê-los de seguida, se por o livro ter sido sempre uma espécie de objecto sacrossanto pelo deleite que me permitia, verdade é que não os risco, não os anoto, não os sublinho, não lhes dobro páginas.
Os meus livros têm papelitos dentro. Os bolsos dos meus casacos têm papelitos dentro. As minhas pastas têm papelitos dentro. As minhas gavetas têm papelitos dentro. Os porta-luvas têm papelitos dentro.
Tenho o hábito de escrever em papelitos o parágrafo que acabo de ler e não quero perder. Ou os três ou quatro versos que ainda saboreio. Ou mesmo, as duas ou três frases que me assomam. O objectivo é apenas repetir o prazer. Abrir um livro "de trabalho" e ler "Pára-me de repente o pensamento... / - Como se de repente sofreado / Na douda correria... em que, levado... / -Anda em busca... da paz... do esquecimento" (Ângelo de Lima)é receber dois minutos de presente.
As passagens de livros contêm o título, os versos, o nome do peta, frases minhas, a data.

Deu-se o caso de ter encontrado, há dias, um desses papelitos contendo duas transcrições do mesmo livro(?), que terei lido há cerca de vinte anos, mas que, infelizmente, não continha a indicação do título. Não sei se foi a pressa de continuar a ler ou a certeza de que nunca esqueceria. Verdade, porém, é que não sei quem escreve assim:
"Sê avisado, desconfia das tuas inclinações. Não imagines precipitadamente. Procura pacientemente a essência da tua natureza. Procura descobrir, pouco a pouco, a tua personalidade real. Nada fácil! Muitos só o conseguem demasiado tarde. Outros, não o conseguem nunca. Dá tempo ao tempo, não te apresses. É preciso tactear muito antes de se saber quem se é. Mas, quando te tenhas encontrado a ti mesmo, rejeita então depressa todas as vestes de empréstimo."


10 comentários:

  1. Caro Outro Ente,
    A biblioteca da sua casa paterna poderia bem ser a da minha.
    "Quatro Torres" indica a presença de menina(s) em casa :)
    Também eu passei o ponto de ter lido tudo e, por isso, ter passado para a ala adulta antes de chegar a essa fase.
    O texto que transcreve parece ser eclesiástico, mas, se fosse, lembrar-se-ia, com certeza.
    Um dia feliz.
    Beijos,
    Linda Porca.

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  2. Cara Linda,
    Intriga-me a sua conclusão de que reconheceria um texto eclesiástico. Por mais que rebusque não sei o que lhe terá dado tal ideia.
    Bom dia,
    Outro Ente.

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    1. Apenas porque não é assim tão vulgar ler-se textos eclesiásticos, pelo que, se algum dia tivesse lido um, provavelmente, agora, seria mais fácil localizá-lo como o tal.
      Boa tarde,
      Linda Porca.

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    2. Pois, teria razão, não fosse dar-se o caso de ser tema que me interessa. Li vários. Aliás, uma das minhas alegrias é deter os três tomos da Iniciación Teológica, da Editorial Herder, de 1956.
      Beijos,
      Outro Ente.

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  3. Caro Outro Ente
    A biblioteca do meu pai tem cerca de 40 000 livros . A partir dos 10, 11 anos tive acesso a todos os livros, podendo escolher sem qualquer censura e lendo outros por escolha paterna. Foi assim que muito nova descobri, Camilo, Zola, Boris Vian, Dickens, Musil, etc.
    De alguns livros gostei e gosto muito , de outros nem tanto.
    Por exemplo, e certamente por deficiência minha nunca consegui gostar da Montanha Mágica, perdoe-me mas se a ter certa altura acho que a vida no sanatório seria muito boa a partir de certa altura o livro faz-me muito sono.

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    1. Querida Ana,
      Uma biblioteca privada com 40.000 livros é impressionante. Considere-me muito impressionado. A minha rondará uns míseros 2.000. E, mesmo assim, estou com dificuldade em localizar o excerto.
      Não é razoável esperar que todos gostem do mesmo. Montanha Mágica é um dos meus dilectos.
      Beijos,
      Outro Ente.

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  4. Chegaram-me livros pelas mãos de amigos. Desde menina, lia tudo o que me chegava às mãos e, em casa, havia uns 100, no máximo. Coisa pouca para a minha avidez. Dava graças à biblioteca ambulante, às Selecções Reader's Digest e, mais tarde, ao Círculo de Leitores. Mas os clássicos russos, franceses e Ingleses, vieram ter comigo em caixas de verga (aquelas em que se vendiam as garrafas de espumante), trazidos por um homem que viu em mim a filha que não teve.
    Muitas noites fiquei, de foco em riste debaixo dos lençóis, a terminar um livro.
    Hoje, a minha biblioteca ascende a uns milhares de livros. Talvez um dia o meu filho possa escrever um post semelhante a este.

    Beijos, caro Ente.

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    1. Querida Maria Eu,
      Incomparavelmente mais valioso do que ter livros é gostar de ler. Nem sempre tê-los à mão implica tê-los à cabeceira.
      Recordar-se-á, certamente, de a ouvir ler para ele.
      Beijos,
      Outro Ente.

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  5. Essa passagem cheirou-me a Herman Hesse. Fui ver no "Demian", não encontrei. "Siddharta"?
    (mas eu não tenho 2000 livros, acho, que nunca os contei devido a, mesmo assim, serem muitos muitos)
    Boa semana, caro Ente, outro abraço. :-)

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  6. Querida Susana,
    De Hesse só me lembro de ter lido Narciso e Goldmund.
    As bibliotecas, enquanto coleções de livros particulares, interessam apenas se revelam o que lemos.
    Obrigado pelo cuidado.
    Um beijo,
    Outro Ente.

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