terça-feira, 31 de março de 2015

A propósito de Senhora Junot, duquesa da Abrantes*

Quando fiz 16 anos ofereceram-me uma acelera, tipo vespa. Lembro-me muito bem desse episódio, em que recebi as chaves, coloquei o capacete, peguei na minha licença camarária e carreguei no botão start. Eram uma bws e um shoei, que coroavam mais de ano de desejo e resultado.
Saí da garagem dono de um sonho meu. O pai seguia-me no carro, acompanhando a viagem inaugural que era, para mim, o grito do Ipiranga.
Era tão fácil, tão bom, tão livre, tão tudo... (só faltava levá-la à oficina, para que a despissem do estrangulador que a limitava aos 50km/h, e também ela seria livre para atingir os 70 nas descidas).
Determinado em mostrar o consciencioso condutor que era, parei à entrada de uma rotunda. Infelizmente, esqueci-me que era tão fácil que andava sem esforço. E, ao repousar a mão, dei um cheirinho de acelerador que lhe levantou o nariz e a estatelou a poucos metros. Eu fiquei de pé a dizer foda-se, foda-se, foda-se...
Desorientado, levantei-a do chão, repetindo foda-se. Infelizmente, esqueci-me de a desligar. Esqueci-me que era tão fácil que andava sem esforço. E lá se foi com o outro lado ao chão, sem que eu conseguisse parar os foda-se que me saíam. Entretanto, o pai chegou-se a mim, sem abrir a boca. E eu, sentado sobre o asfalto, desliguei o sonho que nunca deixara de funcionar, alienado na ladainha foda-se, foda-se, foda-se...
Só quando esgotei todos os foda-se que havia em mim me pus de pé, levantei o meu sonho e regressei a casa. Cuidei-lhe dos riscos que disfarçaram e agrafei-lhe a matrícula com um arame que improvisei.
Tornámo-nos inseparáveis. Não tornei a cair e nem a dizer tanto foda-se por atacado.
(Acho que nunca tinha escrito foda-se tantas vezes.)

*Caderno de Significados, Agustina Bessa-Luís)

10 comentários:

  1. As relações têm dessas coisas. O foda-se faz parte. O cuidar das feridas, também.

    Boa noite, caro Ente. :)

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  2. Querida Maria Eu,
    Apego-me às paixões. A bws ocupa hoje lugar numa garagem, em companhia a um trator e a umas bicicletas sem mudanças.
    Beijos,
    Outro Ente.

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  3. Depois das amolgadelas, alguns sonhos funcionam melhor!
    Bom dia.

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    1. Bom dia, querida Mia.
      Foram só arranhadelas. Depois, funcionou para mim e para os que me seguiram. Outros diriam que foi didático. Eu não.
      Beijos,
      Outro Ente.

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  4. Este seu texto e aquele das boxes, foram os meus preferidos até agora. Particularmente este, tocou-me o texto e desinquietou-me o título. Fiquei a pensar o que é que uma coisa teria a ver com a outra e depois... a dita duquesa era dada à difamação, não era? combate sujo, de quem não tem armas para combater limpo. A única relação que eu consegui ver entre o título e o texto é que há gente que provoca riscos na alma dos outros, assim como o asfalto provocou na sua bws. Depois, é dizer todos os foda-se a que se tem direito, levantar e seguir em frente, é isto?. Se eu não percebi nada desta relação entre o título e o texto, não tenha qualquer problema em corrigir-me, até agradeço que o faça.
    Boa noite, Outro Ente.

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  5. Querida Cláudia,
    Diz Agustina que a Senhora Junot, duquesa de Abrantes, entendia "que o povo português não sabia dizer palavrões, o que era sintoma de decadência e alma pequena".
    (Os dois posts de que fala resultam da teimosia do Outro em, chegando a casa, despir as vestes.)
    Beijo,
    Outro Ente.

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  6. Ah! então foi isso...
    Muito obrigada, tinha mesmo curiosidade em saber o que tinha pensado ao dar esse título a esse texto, não conheço o Caderno de Significados. Mas tendo em conta o que a história diz relativamente à duquesa, é não ligar muito ao que a senhora dizia, muito menos no tocante a isso da decadência e de almas pequenas.
    Boa noite, Outro Ente.

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    1. Querida Cláudia,
      Escreve Agustina, relativamente à deceção da duquesa, "que isso traduz a sua própria desilusão narcísica".
      Beijo,
      Outro Ente.

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  7. A primeira vez que conduzi uma acelera, aí com uns catorze anos, estampei-me na primeira curva. Também disse foda-se.

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    1. Querida Mais Picante,
      E poderia lá dizer-se outra coisa? Espero que não tenha ficado muito danificada.
      Bom dia,
      Outro Ente.

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