quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Ca-su-lo

Era uma noite quente. Saímos os dois, para respirar o mar. A mão dele dentro da minha. "Não apertes tanto pai". Mas eu gosto de o ter ali e esqueço-me de não apertar. Aliás, gosto tanto de o apertar que, quando lhe dou a mão, (e damos sempre as mãos) rodeio o seu pulso com o dedo. "Fazes-me cócegas pai". E eu gosto de lhe fazer cócegas. E de o ouvir rir. "Mais não pai". E de sentir aquela mão pequenina dentro da minha. Como um casulo. Gosto de casulos mais do que de sedas.
Mas, dizia que passeávamos de mão dada. Melhor, ele dá-ma e eu seguro-lha. Isto é, seguro-o. Adiante. A certa altura, interrompendo a nossa conversa sobre "o pastilhas e o soneca", ele diz "ni-co-la", apontando o reclame luminoso do café de praia. Apertei-lhe um pouco mais a mão.
Depois disso passou a ler "vo-ta" nos cartazes de propaganda. E "mo-ta" e "va-ca" e "pi-pa" nos jogos de palavras.
Ontem ao serão, exibia-se lendo palavras do livro de português que já chegou "fo-ca", "da-do", quando lhe apontei a palavra dedo escrita sob a respetiva imagem. Muito compenetrado, pausadamente, ele disse "u-nha".


(Aquelas imagens. O menino inerte. Os meninos sem casulos.)

9 comentários:

  1. Ainda está manhã, Com a minha filha no carro, pensava nas centenas deeninos sem casulos. Ontem faltou-me o chão quando entrei em casa da minha mãe e o meu sobrinho me estendeu os braços gorduchos e o sorriso desdentado. Trazia uns calções azuis e uma t-shirt encarnada. Na televisão mostravam o bebé afogado na Turquia, de calções azuis e camisola encarnada. Continuo a não perceber como há raspas que se julgam a salvo desta tragédia humanitária.

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  2. Centenas de meninos*
    Há pessoas*

    (Hei-de lançar um foguete no dia em que conseguir escrever um comentário sem erros)

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    1. Querida Mirone,
      O plural não substitui o singular. O número de mortos não impressiona mais do que aquele morto. A vida é incomensurável. Não vale a de muitos, mais do que a de um. Aquele menino comove.
      Um bom dia,
      Outro Ente.

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  3. Para quem é pai (e mãe) dói-nos muito ver imagens que imediatamente transportamos para nós próprios.
    Agarra bem esse menino, Ente.

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    1. Querida Uva Passa,
      É impossível olhar aqueles bracinhos imóveis ao longo do corpo sem pensar no aperto dos abraços e no calor das mãos.
      Um beijo,
      Outro Ente.

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  4. O calor dos nossos ainda nos faz sentir mais agudamente o frio...

    Beijos, caro Ente.

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    1. Sim, querida Maria Eu.
      Reconheço que foi só depois de os ter meus. Como se tivessem vindo ensinar-me, também, a empatia.
      Um beijo,
      Outro Ente.

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  5. No desespero da busca de respostas para tanto porquê, fui desencantar a tradução da inscrição nas costas do oficial que carrega o menino ao colo, cuja curvatura e semblante revelam toda a tortura que aquela pessoa está a sofrer, e, ironicamente, ou talvez não, significa "Polícia de Investigação Criminal". Ponhamos os olhos no adjectivo.
    Um beijo abraçado, Outro Ente,
    Linda Blue.

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    1. Querida Linda Blue,
      Eu já estou por tudo. Que se percam os porquês. Bastar-me-iam as soluções.
      Um beijo,
      Outro Ente.

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